quarta-feira, 9 de março de 2016

MACHISMO OU SEXISMO?



MACHISMO OU SEXISMO?

Stella Anderson[1]

As palavras são armas. Armas bem afiadas, dependendo do caso. A questão é de quem e para combater quem. Judith sempre fala do “machismo” e vê este em todo o lugar e momento, desde que tenha um homem por perto. Certa vez perguntei para ela o que significa essa palavra e ela não soube dizer, apenas citou exemplos e afirmações contra os homens. A palavra “machismo” não é um conceito estabelecido, é apenas uma arma de luta, mal usada e abusadamente. O feminismo, a partir de algumas obras canônicas, tematizou a opressão da mulher e depois foi se cristalizando, perdendo a capacidade crítica e autocrítica, adequando ao mundo circundante e naturalizando o mesmo. A diferença entre esse feminismo caduco e o que ele combate é que coloca mais onde os que elas combate colocam menos e vice-versa. Então é fundamental retomar a discussão a respeito do que as mulheres realmente precisam para sua libertação ao invés do apego dogmático a ideologias produzidas no campo chamado do “feminismo”. O primeiro passo é reavaliar criticamente o feminismo e o uso de termos banalizados como “machismo” e reencontrar o real problema e não ficar com querelas ilusórias.

O primeiro ponto a se destacar é a criação do feminismo como “concepção de mundo”. Certa vez Freud, um homem (o que para muitas feministas “radicais” já é um defeito), foi acusado de ter deixado “metade da humanidade” fora de sua análise. Isso é meia verdade e o feminismo, inclusive o de Beauvoir, é cheio de meias verdades, promovendo ilusões e enganos. Freud abordou sim a mulher. Não como foco e nem como deveria tratar e por isso merece crítica. No entanto, a feminista que repete isso contra Freud também descarta metade da humanidade, sendo ele um integrante desse vasto grupo, só que é a “outra metade”. O feminismo como concepção de mundo é um equívoco a ser superado. Ele só teria sentido como um conjunto de análises e proposições a respeito da emancipação feminina e não uma concepção de mundo global, pois parcial por natureza e que não só parte de uma perspectiva unilateral (a da ideologia feminista) como expressa interesses unilaterais (o das mulheres). O feminismo é separatista e ao separar o mundo entre homens e mulheres, apenas mostra seus limites intelectuais e políticos. O feminismo foi absorvido pelo capitalismo e reproduz sua lógica, inclusive intelectual.

Logo, Deus criou a mulher e o feminismo criou o machismo. Esse é o conto de fadas elaborado pelas feministas e que não se diferencia do mito da criação. Judith não sabe dizer o que é o machismo e na literatura feminista não se encontra um conceito e sim, no máximo e raros casos, uma breve definição sem maior fundamentação. O machismo pode ser definido como uma ideologia? Bom, seria necessário descobrir quem são os seus ideólogos e em que obras ele se manifesta. Mas, assim como o feminismo, é possível ver algumas afirmações soltas pejorativas contra as mulheres em alguns pensadores, mas não algo de conjunto e organizado para ser chamado de “ideologia”. Seria então uma prática? Qual e realizada por quem? E essa prática seria direcionada apenas para as mulheres e apenas por homens? Não é possível demonstrar isso. Se o homem possui empregada doméstica, a esposa desse homem também. Se o homem trabalha e a esposa cuida da casa, ambos trabalham e permitem a reprodução familiar. Se existe prática realizada contra as mulheres, ela não é coletiva, de todos os homens, não é algo que seria um conjunto ao qual se poderia chamar machismo. Se Fred bate em Ruth, isso é violência contra a mulher num caso específico. Fred, no entanto, não é o conjunto dos homens, é um deles. Não é possível generalizar.

Seria uma forma de preconceito? A grande maioria dos homens adoram as mulheres. Alguns até mesmo idolatram, seja por idealizar a figura feminina, seja por causa da sexualidade. Alguns ficam, por causa disso, totalmente submissos às suas mulheres. É verdade que um grande número de homens questiona e critica as mulheres. Assim como o contrário e o feminismo é expressão organizada disso. Alguns criticam as mulheres devido ao que elas fazem, suas práticas e ações cotidianas. Da mesma forma, as mulheres fazem isso com os homens. E as mulheres, em sua maioria, possuem muitos defeitos. Esses defeitos, não são “natos”, não são parte de uma “natureza feminina”, são produtos da socialização e relações sociais que geram comportamentos padronizados para as mulheres. Então criticar as mulheres não é problema, é uma necessidade e nós deveríamos ser as primeiras a fazer isso. As mulheres são pródigas, principalmente as mais intelectualizadas, em críticas aos homens e ao “machismo”, mas pouco afeitas a criticarem as mulheres e a si mesmas. Algumas feministas radicais criticam os homens e os acusam de “oprimir” as mulheres com as “cantadas”, “olhares”, etc. Realmente, as mulheres raramente fazem isso e os homens geralmente. Isso não é da “natureza masculina” (curiosamente muitas ideólogas feministas querem “desnaturalizar” o sexo feminino e ao mesmo tempo fazem o trabalho inverso de “naturalizar” o sexo masculino). Um pouco de conhecimento histórico mostra isso: já teve uma época em que os homens tinham que “cortejar” as mulheres e isso de acordo com regras morais estabelecidas rigidamente. A mutação do comportamento masculino é resultado de mudanças sociais. Existe algo chamado “sexualidade” e essa é uma necessidade humana e só se realiza se houver possibilidades que são, na sociedade atual, percebidas através de determinados ações, como “cantadas” e “olhares”, bem como por uso de determinadas roupas, entonação de voz, etc., que é o jogo feminino de sedução. Felizmente, os “machistas” ainda não reclamaram dessas práticas femininas que oprimem os homens vendo eles apenas como seres sexuais. A ironia é apenas para dizer que comportamentos comuns, produtos sociais que podem ser questionados, são atribuídos aos homens sob forma moralista e que isso não contribui com a libertação das mulheres. Claro está que existem homens que não fazem o processo de aproximação em relação a uma mulher de forma adequada, são exagerados, desproporcionais, deselegantes, agressivos, entre outros defeitos e problemas, que são individuais (e remonta a educação e vida psíquica dos indivíduos que fazem isso) e não algo dos “homens”. A generalização, novamente, é um equívoco.

Afinal de contas, o que é o machismo? É algo indefinido ou mal definido que não tem base real. Ele simplesmente não existe. O machismo é uma invenção “feminista”. Depois de inventado, é banalizado e reproduzido, usado como arma de luta contra os homens por parte de algumas mulheres. Logo, é algo que não contribui com a libertação feminina e deve ser descartado e em seu lugar deve aparecer um conceito real que aponte para compreender a opressão das mulheres na sociedade atual.

E aí nos deparamos com a pobreza do feminismo. As maiores feministas da história não conseguiram elaborar uma teoria e nem um projeto de libertação, justamente por ficarem presas no edifício ideológico do feminismo, por um lado, e pelas condições sociais e culturais, por outro. Betty Friedan e Simone de Beauvoir apenas lançaram palavras e ideias, sem apresentar uma elaboração ampla e profunda dos problemas que atingem as mulheres (e não só elas). A bazófia do “gênero” é um recuo intelectual, moral e político do feminismo. Todas as ideologias feministas seguem ideologias produzidas por homens (Simone de Beauvoir e o existencialismo sartreano; Betty Friedan e o liberalismo de Locke e outros liberais; as feministas de gênero e Foucault e outros pós-modernos), o que para muitas é algo negativo, o que revela mais uma contradição.

Esse é um falso problema, ou seja, a questão não está no fato de que o esqueleto teórico de base tenha sido produzido por homens e sim quem eram eles e de que perspectiva. O liberalismo é uma das ideologias mais prejudiciais para as mulheres. Por exemplo, as feministas liberais defendem que o “corpo é da mulher” e ela faz o que quiser com o mesmo. É a ideia da propriedade e da mercadoria. O corpo é a mercadoria da mulher. Não é destituído de razão que muitas feministas liberais irão justificar e legitimar uma das piores formas de opressão feminina: a prostituição. Assim como operário vende sua força de trabalho em troca de um salário, a prostituta vende seu corpo temporariamente em troca de dinheiro. Em ambos os casos, são meios de sobrevivência numa sociedade que todas as relações sociais são mediadas pelo dinheiro. Se algumas prostitutas dizem que “gostam”, isso é discurso, seria difícil dizer o contrário. E se algumas, com distúrbios sexuais, realmente gostam, dificilmente gostam de todos os homens (basta ter dinheiro) que aparecem. Isso só tem sentido numa sociedade capitalista, que gera a oferta (mulheres, por carência financeira ou por outros problemas) e a procura (homens fracassados ou insatisfeitos sexualmente por diversas razões), ambas geradas nas relações sociais desta sociedade e não simplesmente coisas naturais.

Um pensamento feminista autônomo, independente, completo, uma verdadeira concepção de mundo, é inexistente. E se existisse, seria algo tenebroso. E existe esse algo sombrio que paira sobre nossas cabeças, mas sua “autonomia” é falsa, é caudatária de ideologias outras, todas muito bem ajustadas à sociedade que gera a opressão feminina. O pensamento da emancipação feminina só pode ser o da libertação humana em geral, pois só é possível abolir uma situação de opressão mudando suas bases reais, existentes de fato, e não simplesmente atacando os indivíduos supostamente opressores.

Diante dos dois problemas colocados: o equívoco do discurso sobre “machismo” e a miséria do feminismo, é necessário apontar para uma saída. Não é possível aceitar a situação de homens e mulheres na sociedade atual, a opressão feminina, a tragédia masculina.

O primeiro ponto é que é necessário uma compreensão mais profunda da situação e opressão da mulher e o segundo é, tendo identificado as causas, atuar para sua abolição. Aqui não poderemos fazer isso. Isso é um projeto que pode se concretizar mas pode demorar anos, da mesma forma que pode ser coletivo e partindo de diversas contribuições, em que pese isso seja mais difícil, pois depende de condições sociais e culturais, inclusive a crítica do feminismo. Aqui o que pode ser feito é uma modesta contribuição que é, a partir da crítica do clichê do “machismo”, tentar apontar para algo real e existente de fato.

Isso, no entanto, nos remete ao problema das bases intelectuais de tal percepção da realidade. Não é nas concepções feministas, produtos de sua época e atoladas até o pescoço na sociedade do presente, que acharemos tais bases. É na crítica do capitalismo apontada por Marx que poderemos avançar nesse processo de discussão. Não é possível retomar sua teoria, apontar a crítica ao capitalismo e todos os elementos derivados, muito menos discutir o tema mais espinhoso do comunismo, que tinha um significado na mente desse pensador, e ganhou outras formulações nos discursos e práticas daqueles que se dizem seus seguidores, os “marxistas”. O que interessa é apenas explicitar que essa é a base intelectual que permite ultrapassar os limites do feminismo e das análises ideológicas e aprofundar a compreensão da situação da mulher (e do homem) e apontar para sua libertação.

O machismo é um termo questionável e destituído de sentido. Um outro termo muito mais adequado já foi utilizado por algumas mulheres e por alguns homens. É o termo sexismo. Claro que as palavras mudam de significado, podem ser deformadas e perder o significado original, podem se esvaziar e tornar apenas armas de luta. Por isso é necessário esclarecer o significado do termo sexismo. O sexismo é um conjunto de ideias e práticas que geram inferiorização do sexo oposto. Isso pode ocorrer através da naturalização (como uma “essência”): “as mulheres são todas iguais”. Essa inferiorização pode assumir uma forma mais extrema, como, por exemplo, condenar o sexo oposto, fundado em concepções (de origem moral, intelectual, psíquica, religiosa, científica, entre outras possibilidades) como sendo “maléfico”, gerando um maniqueísmo. Um discurso sobre a inferioridade da mulher é, portanto, sexismo, bem como sobre a maldade masculina. O feminismo, por exemplo, é amplamente sexista.

Aqui fica fácil ver a diferença. O feminismo (doutrina de mulheres) condena o machismo (produto dos homens). A estrutura desse raciocínio é maniqueísta, o bem é o feminismo, o que as mulheres produzem de representações sobre a relação entre homens e mulheres e o mal é o machismo, o que os homens produzem do lado oposto. A palavra machista é produto de uma estrutura de raciocínio maniqueísta. Ele é gerado e reproduzido por mulheres problemáticas, que tiveram experiências traumáticas com os homens ou oportunistas, que usam isso para proveito próprio. A sua reprodução acaba se generalizando para mulheres bem intencionadas e que lutam contra o sexismo, mas que não possuem reflexão crítica e profunda, ficando no mundo das aparências e sendo reforçadas pelos discursos raivosos das “feministas”.

O termo sexismo não é maniqueísta e percebe que existe conflito e opressão de ambos os lados, embora a opressão dos homens seja mais confortável. O movimento negro não gerou um “negrismo”, apesar de que no seu interior também tenha surgido correntes maniqueístas e extremistas. Os seus grandes pensadores nunca fizeram esse processo de produção de ideologia ofensiva e agressiva contra os brancos. Combateram o racismo, termo que também não é maniqueísta e que também serve para ambos os lados. Combater o racismo significa combater a desigualdade racial e tudo que lhe é derivado, como preconceito, discriminação, violência. O movimento das mulheres deve combater o sexismo e adquirir a mesma generosidade presente no combate ao racismo. Da mesma forma, deve ficar claro que o movimento feminino não é a mesma coisa que feminismo. O feminismo é um conjunto de ideologias que impregnam grande parte das lutas das mulheres e é bem diminuto na luta das que são trabalhadoras e estão lutando não contra os homens e sim contra a classe dominante que gera sua situação de classe e sua inferiorização de sexo.

O sexismo é predominantemente contra as mulheres, mas não é uma construção masculina e sim social, que, inclusive, conta com a colaboração de algumas mulheres. Nesse sentido, o movimento das mulheres deve ser antissexista. O antissexismo não pode ser a única bandeira das mulheres. O sexismo tem raízes sociais e por isso não é combatendo e demonizando os homens, nem judicializando tudo, ou, ainda, com políticas de privilégios para mulheres, que se resolve a questão. O antissexismo é uma bandeira das mulheres. O seu valor, no entanto, reside em superar a superficialidade do feminismo, com seus reducionismos e maniqueísmos, e colocar em questão as causas do sexismo. As causas do sexismo residem na sociedade no seu conjunto, na estrutura social capitalista. Por isso, a luta das mulheres não deve ser contra coisas imaginárias, como o “machismo”, “dominação masculina”, “os homens”, e sim contra o sexismo (de ambos os lados) e contra o capitalismo, a base real que gera o sexismo e a opressão das mulheres. A luta das mulheres só pode ser antissexista e anticapitalista, combatendo os efeitos e as causas. Uma coisa complementa a outra. Por isso é possível dizer que a luta feminina é, essencialmente, uma luta antissexista, que é, simultaneamente, por não ser superficial, anticapitalista.

Logo, ao invés de movimento feminista, o que deve existir (e é o que existe concretamente, em grande parte dos casos) é o movimento feminino e ao invés de ideologia feminista, o que proponho é uma teoria antissexista. O antissexismo é antifeminista, pois a estrutura de pensamento feminista é reducionista, maniqueísta, sexista. Assim, o feminismo é separatista e o antissexismo é unionista. O primeiro separa o mundo entre homens e mulheres e coloca a guerra entre ambos como o elemento fundamental; o segundo compreende o mundo sob forma muito mais complexa e totalizante, colocando que a divisão entre homens e mulheres é produzida social e historicamente e por isso a transformação social é o objetivo e essa ocorre no plano da luta de classes e não de “sexos”. Os limites do “feminismo” são por demais evidentes e seu vínculo com os poderes estabelecidos e com as ideologias dominantes é demasiado claro para enganar as pessoas que ultrapassaram as visões superficiais do mundo e são honestas na luta pela emancipação humana.

O movimento feminino deve encampar a luta das mulheres contra o sexismo e suas bases materiais. É um movimento revolucionário ou não é nada.


[1] Autora de Critique of Feminism.

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