quinta-feira, 10 de março de 2016

As principais bandeiras do movimento feminino

O Coletivo 8 de março apresenta abaixo as principais bandeiras do coletivo, que julgamos ser os objetivos de todas as mulheres e, por isso, do movimento feminino:


1. luta contra o capitalismo e pelo comunismo, entendido como "livre autogoverno dos produtores" (MARX).

2. luta antissexista, que significa lutar contra o sexismo contra as mulheres em suas várias formas e contra o sexismo contra os homens, através da misandria e certas tendências feministas.

3. lutas por melhores condições de vida, trabalho e luta para as mulheres trabalhadoras, o que inclui o trabalho de formação política, de lutas quantitativas e reivindicativas que melhores as condições para as mulheres lutarem, ao lado dos homens que efetivam tal luta, pela efetiva transformação social, no sentido apontado acima.

Essas três bandeiras fundamentais acabam gerando novas bandeiras derivadas. Uma luta é a longo prazo, que, no entanto, parece se aproximar cada vez mais, que é a superação do capitalismo e instituição do comunismo. Inclusive há surpresas históricas em que isso fica próximo de ocorrer apesar de antes ser inesperado. Derivado dessa bandeira, aparecem outras, como a crítica das ideologias legitimadoras do capitalismo e das raízes da opressão das mulheres, crítica do feminismo que fica nos limites dessa sociedade, trabalho cultural e educativo visando formar as bases para a superação do reino do capital, reflexões sobre o socialismo e muito mais.

A outra luta é específica do movimento feminino. É a luta contra o sexismo, sob todas as formas, incluindo o feminismo. A luta contra o sexismo ocorre por causa de sua lógica, suas práticas e suas consequências, inclusive para as mulheres. A luta contra o sexismo contra as mulheres, especialmente contra as mulheres trabalhadoras, é fundamental e prioridade. Esse é um processo intimamente articulado com o anterior, pois permite pequenas conquistas e espaço de ampliação da consciência visando a superação total do sexismo. Ela atua no plano legal, cultural, político, gerando bandeiras mais específicas, como contra o estrupo, violência doméstica, entre diversas outras.

Essa segunda luta está articulada com a primeira e também com a terceira, que trata de coisas mais imediatas e que são condições para melhoria das demais lutas (apresentadas nas duas primeiras bandeiras). Melhores condições de vida, trabalho e luta, para mulheres e homens trabalhadores, com atenção especial para o caso das mulheres trabalhadoras, sem exclusivismos.

Avante à luta!!! A libertação da mulher (e do homem) é obra das mulheres e dos homens unidos na busca de um novo mundo!!!!

quarta-feira, 9 de março de 2016

MACHISMO OU SEXISMO?



MACHISMO OU SEXISMO?

Stella Anderson[1]

As palavras são armas. Armas bem afiadas, dependendo do caso. A questão é de quem e para combater quem. Judith sempre fala do “machismo” e vê este em todo o lugar e momento, desde que tenha um homem por perto. Certa vez perguntei para ela o que significa essa palavra e ela não soube dizer, apenas citou exemplos e afirmações contra os homens. A palavra “machismo” não é um conceito estabelecido, é apenas uma arma de luta, mal usada e abusadamente. O feminismo, a partir de algumas obras canônicas, tematizou a opressão da mulher e depois foi se cristalizando, perdendo a capacidade crítica e autocrítica, adequando ao mundo circundante e naturalizando o mesmo. A diferença entre esse feminismo caduco e o que ele combate é que coloca mais onde os que elas combate colocam menos e vice-versa. Então é fundamental retomar a discussão a respeito do que as mulheres realmente precisam para sua libertação ao invés do apego dogmático a ideologias produzidas no campo chamado do “feminismo”. O primeiro passo é reavaliar criticamente o feminismo e o uso de termos banalizados como “machismo” e reencontrar o real problema e não ficar com querelas ilusórias.

O primeiro ponto a se destacar é a criação do feminismo como “concepção de mundo”. Certa vez Freud, um homem (o que para muitas feministas “radicais” já é um defeito), foi acusado de ter deixado “metade da humanidade” fora de sua análise. Isso é meia verdade e o feminismo, inclusive o de Beauvoir, é cheio de meias verdades, promovendo ilusões e enganos. Freud abordou sim a mulher. Não como foco e nem como deveria tratar e por isso merece crítica. No entanto, a feminista que repete isso contra Freud também descarta metade da humanidade, sendo ele um integrante desse vasto grupo, só que é a “outra metade”. O feminismo como concepção de mundo é um equívoco a ser superado. Ele só teria sentido como um conjunto de análises e proposições a respeito da emancipação feminina e não uma concepção de mundo global, pois parcial por natureza e que não só parte de uma perspectiva unilateral (a da ideologia feminista) como expressa interesses unilaterais (o das mulheres). O feminismo é separatista e ao separar o mundo entre homens e mulheres, apenas mostra seus limites intelectuais e políticos. O feminismo foi absorvido pelo capitalismo e reproduz sua lógica, inclusive intelectual.

Logo, Deus criou a mulher e o feminismo criou o machismo. Esse é o conto de fadas elaborado pelas feministas e que não se diferencia do mito da criação. Judith não sabe dizer o que é o machismo e na literatura feminista não se encontra um conceito e sim, no máximo e raros casos, uma breve definição sem maior fundamentação. O machismo pode ser definido como uma ideologia? Bom, seria necessário descobrir quem são os seus ideólogos e em que obras ele se manifesta. Mas, assim como o feminismo, é possível ver algumas afirmações soltas pejorativas contra as mulheres em alguns pensadores, mas não algo de conjunto e organizado para ser chamado de “ideologia”. Seria então uma prática? Qual e realizada por quem? E essa prática seria direcionada apenas para as mulheres e apenas por homens? Não é possível demonstrar isso. Se o homem possui empregada doméstica, a esposa desse homem também. Se o homem trabalha e a esposa cuida da casa, ambos trabalham e permitem a reprodução familiar. Se existe prática realizada contra as mulheres, ela não é coletiva, de todos os homens, não é algo que seria um conjunto ao qual se poderia chamar machismo. Se Fred bate em Ruth, isso é violência contra a mulher num caso específico. Fred, no entanto, não é o conjunto dos homens, é um deles. Não é possível generalizar.

Seria uma forma de preconceito? A grande maioria dos homens adoram as mulheres. Alguns até mesmo idolatram, seja por idealizar a figura feminina, seja por causa da sexualidade. Alguns ficam, por causa disso, totalmente submissos às suas mulheres. É verdade que um grande número de homens questiona e critica as mulheres. Assim como o contrário e o feminismo é expressão organizada disso. Alguns criticam as mulheres devido ao que elas fazem, suas práticas e ações cotidianas. Da mesma forma, as mulheres fazem isso com os homens. E as mulheres, em sua maioria, possuem muitos defeitos. Esses defeitos, não são “natos”, não são parte de uma “natureza feminina”, são produtos da socialização e relações sociais que geram comportamentos padronizados para as mulheres. Então criticar as mulheres não é problema, é uma necessidade e nós deveríamos ser as primeiras a fazer isso. As mulheres são pródigas, principalmente as mais intelectualizadas, em críticas aos homens e ao “machismo”, mas pouco afeitas a criticarem as mulheres e a si mesmas. Algumas feministas radicais criticam os homens e os acusam de “oprimir” as mulheres com as “cantadas”, “olhares”, etc. Realmente, as mulheres raramente fazem isso e os homens geralmente. Isso não é da “natureza masculina” (curiosamente muitas ideólogas feministas querem “desnaturalizar” o sexo feminino e ao mesmo tempo fazem o trabalho inverso de “naturalizar” o sexo masculino). Um pouco de conhecimento histórico mostra isso: já teve uma época em que os homens tinham que “cortejar” as mulheres e isso de acordo com regras morais estabelecidas rigidamente. A mutação do comportamento masculino é resultado de mudanças sociais. Existe algo chamado “sexualidade” e essa é uma necessidade humana e só se realiza se houver possibilidades que são, na sociedade atual, percebidas através de determinados ações, como “cantadas” e “olhares”, bem como por uso de determinadas roupas, entonação de voz, etc., que é o jogo feminino de sedução. Felizmente, os “machistas” ainda não reclamaram dessas práticas femininas que oprimem os homens vendo eles apenas como seres sexuais. A ironia é apenas para dizer que comportamentos comuns, produtos sociais que podem ser questionados, são atribuídos aos homens sob forma moralista e que isso não contribui com a libertação das mulheres. Claro está que existem homens que não fazem o processo de aproximação em relação a uma mulher de forma adequada, são exagerados, desproporcionais, deselegantes, agressivos, entre outros defeitos e problemas, que são individuais (e remonta a educação e vida psíquica dos indivíduos que fazem isso) e não algo dos “homens”. A generalização, novamente, é um equívoco.

Afinal de contas, o que é o machismo? É algo indefinido ou mal definido que não tem base real. Ele simplesmente não existe. O machismo é uma invenção “feminista”. Depois de inventado, é banalizado e reproduzido, usado como arma de luta contra os homens por parte de algumas mulheres. Logo, é algo que não contribui com a libertação feminina e deve ser descartado e em seu lugar deve aparecer um conceito real que aponte para compreender a opressão das mulheres na sociedade atual.

E aí nos deparamos com a pobreza do feminismo. As maiores feministas da história não conseguiram elaborar uma teoria e nem um projeto de libertação, justamente por ficarem presas no edifício ideológico do feminismo, por um lado, e pelas condições sociais e culturais, por outro. Betty Friedan e Simone de Beauvoir apenas lançaram palavras e ideias, sem apresentar uma elaboração ampla e profunda dos problemas que atingem as mulheres (e não só elas). A bazófia do “gênero” é um recuo intelectual, moral e político do feminismo. Todas as ideologias feministas seguem ideologias produzidas por homens (Simone de Beauvoir e o existencialismo sartreano; Betty Friedan e o liberalismo de Locke e outros liberais; as feministas de gênero e Foucault e outros pós-modernos), o que para muitas é algo negativo, o que revela mais uma contradição.

Esse é um falso problema, ou seja, a questão não está no fato de que o esqueleto teórico de base tenha sido produzido por homens e sim quem eram eles e de que perspectiva. O liberalismo é uma das ideologias mais prejudiciais para as mulheres. Por exemplo, as feministas liberais defendem que o “corpo é da mulher” e ela faz o que quiser com o mesmo. É a ideia da propriedade e da mercadoria. O corpo é a mercadoria da mulher. Não é destituído de razão que muitas feministas liberais irão justificar e legitimar uma das piores formas de opressão feminina: a prostituição. Assim como operário vende sua força de trabalho em troca de um salário, a prostituta vende seu corpo temporariamente em troca de dinheiro. Em ambos os casos, são meios de sobrevivência numa sociedade que todas as relações sociais são mediadas pelo dinheiro. Se algumas prostitutas dizem que “gostam”, isso é discurso, seria difícil dizer o contrário. E se algumas, com distúrbios sexuais, realmente gostam, dificilmente gostam de todos os homens (basta ter dinheiro) que aparecem. Isso só tem sentido numa sociedade capitalista, que gera a oferta (mulheres, por carência financeira ou por outros problemas) e a procura (homens fracassados ou insatisfeitos sexualmente por diversas razões), ambas geradas nas relações sociais desta sociedade e não simplesmente coisas naturais.

Um pensamento feminista autônomo, independente, completo, uma verdadeira concepção de mundo, é inexistente. E se existisse, seria algo tenebroso. E existe esse algo sombrio que paira sobre nossas cabeças, mas sua “autonomia” é falsa, é caudatária de ideologias outras, todas muito bem ajustadas à sociedade que gera a opressão feminina. O pensamento da emancipação feminina só pode ser o da libertação humana em geral, pois só é possível abolir uma situação de opressão mudando suas bases reais, existentes de fato, e não simplesmente atacando os indivíduos supostamente opressores.

Diante dos dois problemas colocados: o equívoco do discurso sobre “machismo” e a miséria do feminismo, é necessário apontar para uma saída. Não é possível aceitar a situação de homens e mulheres na sociedade atual, a opressão feminina, a tragédia masculina.

O primeiro ponto é que é necessário uma compreensão mais profunda da situação e opressão da mulher e o segundo é, tendo identificado as causas, atuar para sua abolição. Aqui não poderemos fazer isso. Isso é um projeto que pode se concretizar mas pode demorar anos, da mesma forma que pode ser coletivo e partindo de diversas contribuições, em que pese isso seja mais difícil, pois depende de condições sociais e culturais, inclusive a crítica do feminismo. Aqui o que pode ser feito é uma modesta contribuição que é, a partir da crítica do clichê do “machismo”, tentar apontar para algo real e existente de fato.

Isso, no entanto, nos remete ao problema das bases intelectuais de tal percepção da realidade. Não é nas concepções feministas, produtos de sua época e atoladas até o pescoço na sociedade do presente, que acharemos tais bases. É na crítica do capitalismo apontada por Marx que poderemos avançar nesse processo de discussão. Não é possível retomar sua teoria, apontar a crítica ao capitalismo e todos os elementos derivados, muito menos discutir o tema mais espinhoso do comunismo, que tinha um significado na mente desse pensador, e ganhou outras formulações nos discursos e práticas daqueles que se dizem seus seguidores, os “marxistas”. O que interessa é apenas explicitar que essa é a base intelectual que permite ultrapassar os limites do feminismo e das análises ideológicas e aprofundar a compreensão da situação da mulher (e do homem) e apontar para sua libertação.

O machismo é um termo questionável e destituído de sentido. Um outro termo muito mais adequado já foi utilizado por algumas mulheres e por alguns homens. É o termo sexismo. Claro que as palavras mudam de significado, podem ser deformadas e perder o significado original, podem se esvaziar e tornar apenas armas de luta. Por isso é necessário esclarecer o significado do termo sexismo. O sexismo é um conjunto de ideias e práticas que geram inferiorização do sexo oposto. Isso pode ocorrer através da naturalização (como uma “essência”): “as mulheres são todas iguais”. Essa inferiorização pode assumir uma forma mais extrema, como, por exemplo, condenar o sexo oposto, fundado em concepções (de origem moral, intelectual, psíquica, religiosa, científica, entre outras possibilidades) como sendo “maléfico”, gerando um maniqueísmo. Um discurso sobre a inferioridade da mulher é, portanto, sexismo, bem como sobre a maldade masculina. O feminismo, por exemplo, é amplamente sexista.

Aqui fica fácil ver a diferença. O feminismo (doutrina de mulheres) condena o machismo (produto dos homens). A estrutura desse raciocínio é maniqueísta, o bem é o feminismo, o que as mulheres produzem de representações sobre a relação entre homens e mulheres e o mal é o machismo, o que os homens produzem do lado oposto. A palavra machista é produto de uma estrutura de raciocínio maniqueísta. Ele é gerado e reproduzido por mulheres problemáticas, que tiveram experiências traumáticas com os homens ou oportunistas, que usam isso para proveito próprio. A sua reprodução acaba se generalizando para mulheres bem intencionadas e que lutam contra o sexismo, mas que não possuem reflexão crítica e profunda, ficando no mundo das aparências e sendo reforçadas pelos discursos raivosos das “feministas”.

O termo sexismo não é maniqueísta e percebe que existe conflito e opressão de ambos os lados, embora a opressão dos homens seja mais confortável. O movimento negro não gerou um “negrismo”, apesar de que no seu interior também tenha surgido correntes maniqueístas e extremistas. Os seus grandes pensadores nunca fizeram esse processo de produção de ideologia ofensiva e agressiva contra os brancos. Combateram o racismo, termo que também não é maniqueísta e que também serve para ambos os lados. Combater o racismo significa combater a desigualdade racial e tudo que lhe é derivado, como preconceito, discriminação, violência. O movimento das mulheres deve combater o sexismo e adquirir a mesma generosidade presente no combate ao racismo. Da mesma forma, deve ficar claro que o movimento feminino não é a mesma coisa que feminismo. O feminismo é um conjunto de ideologias que impregnam grande parte das lutas das mulheres e é bem diminuto na luta das que são trabalhadoras e estão lutando não contra os homens e sim contra a classe dominante que gera sua situação de classe e sua inferiorização de sexo.

O sexismo é predominantemente contra as mulheres, mas não é uma construção masculina e sim social, que, inclusive, conta com a colaboração de algumas mulheres. Nesse sentido, o movimento das mulheres deve ser antissexista. O antissexismo não pode ser a única bandeira das mulheres. O sexismo tem raízes sociais e por isso não é combatendo e demonizando os homens, nem judicializando tudo, ou, ainda, com políticas de privilégios para mulheres, que se resolve a questão. O antissexismo é uma bandeira das mulheres. O seu valor, no entanto, reside em superar a superficialidade do feminismo, com seus reducionismos e maniqueísmos, e colocar em questão as causas do sexismo. As causas do sexismo residem na sociedade no seu conjunto, na estrutura social capitalista. Por isso, a luta das mulheres não deve ser contra coisas imaginárias, como o “machismo”, “dominação masculina”, “os homens”, e sim contra o sexismo (de ambos os lados) e contra o capitalismo, a base real que gera o sexismo e a opressão das mulheres. A luta das mulheres só pode ser antissexista e anticapitalista, combatendo os efeitos e as causas. Uma coisa complementa a outra. Por isso é possível dizer que a luta feminina é, essencialmente, uma luta antissexista, que é, simultaneamente, por não ser superficial, anticapitalista.

Logo, ao invés de movimento feminista, o que deve existir (e é o que existe concretamente, em grande parte dos casos) é o movimento feminino e ao invés de ideologia feminista, o que proponho é uma teoria antissexista. O antissexismo é antifeminista, pois a estrutura de pensamento feminista é reducionista, maniqueísta, sexista. Assim, o feminismo é separatista e o antissexismo é unionista. O primeiro separa o mundo entre homens e mulheres e coloca a guerra entre ambos como o elemento fundamental; o segundo compreende o mundo sob forma muito mais complexa e totalizante, colocando que a divisão entre homens e mulheres é produzida social e historicamente e por isso a transformação social é o objetivo e essa ocorre no plano da luta de classes e não de “sexos”. Os limites do “feminismo” são por demais evidentes e seu vínculo com os poderes estabelecidos e com as ideologias dominantes é demasiado claro para enganar as pessoas que ultrapassaram as visões superficiais do mundo e são honestas na luta pela emancipação humana.

O movimento feminino deve encampar a luta das mulheres contra o sexismo e suas bases materiais. É um movimento revolucionário ou não é nada.


[1] Autora de Critique of Feminism.

segunda-feira, 7 de março de 2016

Vídeo sobre feminismo ditatorial

O vídeo coloca algumas reivindicações e teses do feminismo "radical" e realiza sua crítica:


Novamente sobre fascismo e feminismo

O texto abaixo é muito simples e sintético, mas serve para alertar o que se transformou o "novo feminismo":

  
Em: Blog do Rudá


Vários analistas já se deram conta da emergência do fascismo societal no Brasil. Um conceito que originalmente foi formulado por Boaventura Santos.
Mas há um neofascismo específico que poucos comentam. Trata-se do neofascismo que tenta se apropriar da bandeira do feminismo.
O feminismo, assim como o antirracismo, é uma bandeira humanista, de defesa da espécie, não um novo apartheid. Trata-se de uma bandeira generosa, de inclusão.
O feminismo não é definido apenas por mulheres, mas por feministas, justamente porque propõe a igualdade formal – política e social – de gênero. Portanto, não é demanda de mulheres, mas da espécie. Seria um erro, como afirmar que a luta contra o racismo é definida por negros ou aqueles que sofrem o racismo. Isto seria reduzir uma luta pela igualdade por mera resistência ou defesa de quem se sente desigual.
Este tipo de pensamento exclusivista é pós moderno, fragmentário, estético e despolitizado. Mais que despolitizado: é fascista.
Como todo fascismo, mobiliza, mas não sugere uma mudança social e política. Limita-se a uma tentativa de dar status político a um segmento social. Daí o risco de adotarem os mesmos métodos de quem afirmam explorar o explorado. Algo como uma troca de cadeiras onde muda-se o sinal e tudo fica estruturalmente igual. Enfim, um sexismo com sinal trocado ou banalização desta luta.
O feminismo dialoga claramente com o socialismo. Este neofascismo propõe um apartheid. Alguns de seus adeptos chegam a sugerir que existiria uma espécie de luta de classes entre homens e mulheres. Uma invenção perigosa. Classe social, em algumas teorias liberais, é classificação por poder aquisitivo. Não me parece o caso. No marxismo, é contradição. Evidentemente que a relação entre sexos não é uma contradição ou seria o fim iminente da espécie humana. Afirmar isto revela ignorância política e déficit teórico.
Como todo fascismo, há uma motivação fundada num grande sofrimento sexual, como já demonstrou Reich em seu “A Psicologia de Massas do Fascismo”. O fascismo revela uma sublimação do desejo. O feminismo, ao contrário, é uma proposta generosa, de INCLUSÃO, não um novo apartheid.
Enfim, esse pessoal parece perigoso e usa uma bandeira democrática e generosa para destilar um ódio à espécie. Na verdade, são fascistas porque sugerem algo como a depuração da espécie, como um louco, uma vez, encasquetou que ariano era superior ao resto dos mortais e sugeriu que os escolhidos por ele não poderiam mais se misturar com o resto dos humanos.
http://www.rudaricci.com.br/neofascistas-tentam-se-apropriar-da-bandeira-do-feminismo/
 

Feminismo e Fascismo

FEMINISMO E FASCISMO

Considerações inoportunas e politicamente incorrectas acerca de uma questão dos nossos dias

por João Bernardo



            Há poucos anos atrás, quando preparava um livro sobre o fascismo que entretanto já foi publicado[1], apercebi-me de uma convergência de pontos de vista entre certo tipo de feminismo hoje em voga e a modalidade racista do fascismo, o nacional-socialismo hitleriano. Esta descoberta, devo confessá-lo, deixou-me perplexo.
            À primeira vista, esperar-se-ia uma oposição completa entre o fascismo e o feminismo, já que todos os tipos de fascismo, embora atribuíssem à mulher um papel importante na inculcação dos princípios de ordem ou na preservação da raça, a relegaram para um lugar socialmente secundário. A mulher-mãe era a mulher doméstica, e a casa, sob a autoridade do marido, era o lugar da função procriadora. No entanto, num dos seus traços decisivos - a atribuição de uma raiz biológica às manifestações culturais e a noção de que dadas manifestações culturais indicam uma dada condição biológica - o feminismo que hoje domina os meios académicos e prevalece nos órgãos de informação, propenso às abordagens «de género», para empregar a terminologia corrente, actualizou um modelo de pensamento que caracterizara o racismo germânico, nomeadamente na versão hitleriana.
            As perspectivas «de género» esforçam-se por acentuar a divisão entre a esfera masculina e a feminina, e assim colocam-se no extremo oposto ao do velho feminismo, que procurara emancipar as mulheres anulando as diferenças de comportamento entre os sexos. Ainda não há muito tempo a generalidade do feminismo possuía um cariz progressivo e ocasionalmente revolucionário, na medida em que reivindicava o pleno acesso das mulheres aos espaços económicos e sociais onde predominavam os homens, ou de que eles tinham até o exclusivo. Foi na Alemanha, durante o período chamado da República de Weimar, entre o final da primeira guerra mundial e a nomeação de Hitler para a chancelaria, que a emancipação feminina atingiu uma das suas expressões mais desenvolvidas. A revolução alemã de 1918 tentara derrubar o capitalismo e remodelar a vida social sobre a base dos conselhos de operários e de soldados, e embora tivesse sido derrotada nas suas aspirações económicas não fora vencida completamente e concentrara-se no plano da sociedade, da cultura e dos costumes, dando origem não só a uma notável vanguarda artística mas ainda a uma libertação de preconceitos culturais e sexuais sem antecedentes. Foi necessária a chegada dos nacionais-socialistas ao poder em Janeiro de 1933 para liquidar este movimento. O período da República de Weimar, que deu oportunidade a uma das experiências mais avançadas de feminismo, deve ser tomado como termo de comparação para avaliar as implicações do actual feminismo académico.
            O arquitecto comunista Hannes Meyer, director da Bauhaus desde 1928 até 1930, resumiu em meia dúzia de palavras o feminismo emancipador ao escrever que «a masculinização exterior da mulher manifesta a igualdade interna dos sexos»[2]. O que singularizou aquele tipo de feminismo foi o desejo de superar as diferenças convencionais entre os sexos e de fundi-los ambos na formação de um género verdadeiramente humano. Acerca deste feminismo podia dizer-se, como fez um personagem criado por um crítico alemão, também durante a República de Weimar, que «o sexo [...] passou a ser uma característica humana secundária»[3]. Ainda na Alemanha de Weimar, Gina Kaus, literata de origem austríaca e feminista reputada, decidiu averiguar, sem jamais se desfazer do tom irónico, em que medida a linha de demarcação entre os sexos se fazia sentir nos romances. Se se atribuísse às mulheres, como era - e continua a ser - comum, «a subjectividade, a sensibilidade e a primazia da emoção sobre o raciocínio», e aos homens «a objectividade, a autoridade formal, a amplidão do escopo intelectual, etc.», então tanto umas como os outros se encontravam em ambas as correntes literárias, a sentimental e a racional. «[...] talvez a fronteira tivesse existido outrora», observou Gina Kaus, «mas não existe hoje». Segundo ela, apenas na literatura de genre se mantinha então o privilégio da masculinidade, naquelas obras em que os personagens obedecem, como nas regras de um jogo, às convenções estritas do género - a ficção científica e o romance policial. Barreira de sexo? Não, apenas uma demarcação transitória. «Só desde há pouco tempo foi permitida às mulheres a abordagem dos problemas da realidade. Até uma data recente, ou elas próprias faziam parte da realidade ou eram uma ficção concebida pelos homens. Tal como crianças que tenham subitamente de aprender muito de uma só vez, elas não ousam dedicar-se ao jogo. Talvez daqui a vinte anos a situação seja muito diferente, e quem sabe se na próxima geração daremos graças pelo aparecimento do que tanto necessitamos - um Edgar Wallace feminino»[4]. E, com efeito, Agatha Christie...
            Situa-se nos antípodas o feminismo académico surgido há já algum tempo, que relegou as aspirações do velho feminismo para a vida quotidiana e anónima das mulheres trabalhadoras. O novo feminismo chic preenche um dos verbetes mais extensos daquele reportório de anomalias que é o dicionário do «politicamente correcto». No seu célebre romance Orwell concebeu o newspeak como linguagem dos vencedores, cujo triunfo fora tão absoluto que podiam reconstruir o passado à medida que iam edificando o presente, e se legitimavam no círculo vicioso. As raízes desta cinzenta utopia encontram-se na reportagem sobre a guerra civil na Catalunha, quando Orwell reflectiu que um triunfo total do fascismo em Espanha e no mundo permitiria no futuro apresentar como verdade aquilo que, na realidade da época, era uma absoluta mentira. A hegemonia prática incontestada asseguraria aos vencedores o controlo completo sobre o dicionário e deixá-los-ia, assim, alterar o próprio passado.
            Todavia, se a manipulação das palavras pode levar à desvirtuação das ideias, ela não tem poder para apagar os factos. Os factos passados estão incluídos nos factos presentes, fazem parte de nós mesmos, de cada um de nós ou daquilo que combatemos. E se os senhores do dicionário têm a capacidade de vendar a realidade com biombos, é-lhes impossível alterar a realidade só através das palavras. Curiosamente, as inquietações de Orwell decorriam de um universo de encantações mágicas. A manipulação da linguagem é um jogo de espelhos, praticado desde há muito, como o lucidíssimo Jean-Paul Marat observou ao denunciar que «o artifício corrente dos ministérios é [...] enganar o povo pervertendo o sentido das palavras. [...] Nunca às coisas os seus verdadeiros nomes»[5]. Mas como nós não vivemos do lado de lá do espelho, a desnaturação das imagens está permanentemente condenada a confrontar-se com a realidade.
            A debilidade que hoje enferma as aspirações de emancipação social não podia manifestar-se de maneira mais trágica, porque inteiramente caricata, do que no «politicamente correcto». Trata-se de uma espécie de newspeak dos derrotados, que com a linguagem se envolvem numa teia de ilusões, e aí permanecem, para alívio dos vencedores e não sem a perplexidade de muita gente. Assim, por exemplo, o problema do racismo nos Estados Unidos deixa de ter qualquer sentido se referirmos, em vez de negros, afro-americanos, como se a discriminação resultasse do lugar de proveniência e não das diferenças na tonalidade da pele ou no formato do nariz. Do mesmo modo, se no Brasil se disser afro-brasileiros já o caso muda inteiramente de figura, ou antes, de cor. E as dificuldades sentidas pelos deficientes físicos são apagadas na expressão pudica de portadores de necessidades específicas, como se todos nós não tivéssemos igualmente necessidades específicas. A lista podia prolongar-se indefinidamente. O «politicamente correcto» consiste, em suma, numa manipulação do vocabulário que apaga as palavras mais directamente sintomáticas da persistência real dos problemas. Se quem não conseguiu alterar a prática só pronunciar termos que obnubilam essa prática, a derrota esfuma-se sob a doce ilusão da vitória.
            O tipo de feminismo que hoje adquiriu a hegemonia nas universidades e nos meios de comunicação inclui-se pelas suas prestidigitações terminológicas na ampla e acolhedora família do «politicamente correcto». À falta de as mulheres alcançarem um plano de igualdade com os homens, essa igualdade é estabelecida entre os artigos, os pronomes, as terminações, criando-se uma abstrusa linguagem cheia de traços, barras, parêntesis e duplicações. Em géneros literários considerados de segunda ordem, como o romance policial de estilo série noire – precisamente um tipo de ficção onde existem tradições muito fortes de misoginia – a correcção política da linguagem tem sido aplicada retrospectivamente em reedições realizadas nos países de língua inglesa, e observo com assombro personagens da década de 1950, os mesmos que se caracterizam pelo desprezo a que votam as mulheres, mencionarem chairpersons e outras inovações vocabulares de igual matiz. O que não altera a maneira muito pouco correcta como as mulheres são tratadas na prática ao longo das páginas daqueles livros.
            Estes exercícios «de género» adoptam a tradicional e consabida divisão entre as esferas feminina e masculina, e basta-lhes atribuir uma conotação positiva àquela esfera que antes era valorizada negativamente, classificando ao mesmo tempo como negativa a esfera que primeiro fora objecto do aplauso de uns e da inveja das outras. A inversão da hierarquia entre os termos, considerando como fonte de virtudes a esfera feminina e a masculina como modelo de vícios, reforça a crença na inelutabilidade da existência destes termos. A realidade social, com as suas dicotomias, permanece inalterada. Só muda o vocabulário que designa esta realidade, e muda de tal forma que passa a tornar a realidade opaca para os observadores menos atentos.
            Neste malabarismo a operação central consiste em apagar a distinção entre o ideológico e o biológico. A divisão entre a esfera social masculina e a esfera social feminina resulta de uma criação cultural multi-secular, sendo inculcados às mulheres comportamentos, maneiras e opiniões diferentes dos inculcados aos homens. Mas, precisamente porque, em vez de pretender eliminar a separação dos sexos, pretende consagrá-la, o actual feminismo académico baseia a sua interpretação do mundo numa divisão de carácter estritamente biológico e a partir daí constrói um complexo edifício de distinções culturais. Com igual à-vontade procede em sentido inverso, quando atribui a um dado tipo de ideias, de atitudes e de comportamentos uma conotação biológica, masculina ou feminina consoante as preferências. Surgiu assim, como observa um filósofo que é ou foi marxista, «um tipo de contra-sexismo em que - e não por acaso - as diferenças sexuais são muito frequentemente expressas em termos que apresentam os géneros como quase-raças [...]»[6]. Neste feminismo tanto se pode passar da biologia para a cultura como da cultura para a biologia, e é esta circularidade sem critério que as teorias «de género» partilham com o nacional-socialismo e os seus antecessores directos, que conferiam uma psicologia própria aos povos considerados biologicamente.
            Vejamos o caso de Luce Irigaray, uma luminária das abordagens «de género» na história das ciências. «Será que E = Mc2 é uma equação de carácter sexual?», pergunta essa autora, para logo responder: «Talvez seja. Admitamos como hipótese que o seja na medida em que privilegia a velocidade da luz relativamente a outras velocidades que nos são vitalmente necessárias. O que me parece indicar a possível natureza sexual da equação é [...] o facto de ter privilegiado aquilo que vai mais depressa»[7]. Deixemos de lado as implicações resultantes de um tratamento tão grosseiro das questões científicas, que ilude a problemática da experimentação, para nos concentrarmos na tese de que, como os homens podem correr mais rapidamente do que as mulheres, uma física que atribui um lugar central ao conceito de velocidade padece de um carácter masculino. Com o mesmo tipo de raciocínio, Luce Irigaray sustenta que a mecânica dos sólidos está mais avançada do que a dos fluidos porque são os homens quem controla a actividade científica, e o pénis é susceptível de ficar rijo, enquanto o sexo das mulheres segrega os fluidos vaginais e deixa sair o sangue menstrual[8]. Assim, não seria só a velocidade mas também a solidez a denotar a ideologia masculina no campo das ciências, enquanto a ideologia feminina retiraria à rapidez os seus encantos e estabeleceria os fluidos no devido lugar. Todavia, os progressos da física contemporânea deveram-se não só a homens mas igualmente a pesquisadoras do sexo feminino, de onde se conclui necessariamente que pelo facto de privilegiarem a velocidade da luz ou de incrementarem o estudo da mecânica dos sólidos aquelas mulheres eram verdadeiramente masculinas. Se estes termos pudessem ser considerados com seriedade, seria curioso averiguar se o predomínio numérico das mulheres na biologia ou na química, contrariamente ao que sucede na física, teria levado aqueles ramos da ciência a evoluir por caminhos opostos aos da física.
            Mas não me parece que seja necessário continuar aqui a referir textos de autoras feministas contemporâneas para ilustrar a forma como elas radicam numa distinção biológica as distinções culturais e como, simultaneamente, encontram nas diferenças ideológicas o indício de uma distinção biológica. A dificuldade residiria não em encontrar as citações mas em seleccioná-las, de tão abundantes que são. Julgo que até o leitor mais desprevenido não deixou de deparar com este tipo de duplo raciocínio. Por isso decidi concentrar as citações deste curto artigo noutro aspecto muitíssimo menos conhecido, para mostrar que o nacional-socialismo procedia a propósito das raças – ou daquilo que denominava raças – ao mesmo tipo de operação.
            Com efeito o racismo, mais profundamente do que uma mera hierarquização étnica, consiste na atribuição de raízes biológicas a comportamentos e modos de pensar que são de origem social. A biologização da cultura é a característica distintiva do racismo. Houston Stewart Chamberlain, um dos quatro precursores oficiais do hitlerismo, deixou muito claro, em especial ao opor-se a Paul de Lagarde, outro pontífice oficial do racismo germânico, que na sua opinião as raças eram entidades fundamentalmente biológicas, e não apenas culturais e ideológicas. «[...] a configuração da cabeça e a estrutura do cérebro exercem sobre a configuração e a estrutura dos pensamentos uma influência perfeitamente decisiva; tão decisiva que, por maior que seja a influência atribuída ao meio, esta não deixa de estar submetida à constituição física enquanto facto originário, o qual reduz o número das suas possibilidades, determina o seu campo de acção e prescreve-lhe as suas orientações e os seus limites [...]»[9]. A forma intelectual exprimiria de maneira directa a forma biológica. «[...] em vez de ser fortuita ou indiferente, a forma exprime o âmago do ser, e [...] é nela, precisamente nela, que entram em contacto os dois mundos componentes do nosso universo, o exterior e o interior, o visível e o invisível»[10].
            Não podia ser mais flagrante a identidade de perspectivas com o feminismo académico dos nossos dias, que também ele considera que uma «configuração» física, neste caso a forma do sexo, «exerce sobre a configuração e a estrutura dos pensamentos uma influência perfeitamente decisiva». E a semelhança não pára aqui, porque assim como esse feminismo, depois de passar da biologia para a cultura, passa da cultura para a biologia e cataloga certos comportamentos e certas ideologias como masculinos e outros como femininos, também Houston Stewart Chamberlain tomava a cultura e as ideias como indício seguro da raça.
            Considerada por Chamberlain enquanto forma, a biologia conformava o pensamento; em sentido inverso, as grandes ideias, os eixos ideológicos norteadores, «são quase tão palpáveis» como os corpos físicos. «Relativamente à raça», admitia ele, as ideias «são sem dúvida uma consequência. Mas tenhamos o cuidado de não subestimar o contributo desta anatomia interior e invisível - desta dolicocefalia ou desta braquicefalia puramente espirituais - que age como causa e tem um âmbito de acção muitíssimo vasto»[11]. Era aqui que Chamberlain encontrava justificação para, quando melhor lhe convinha, deduzir a biologia a partir da caracterização ideológica. «[...] aquilo que designamos pela palavra “raça” é, dentro de certos limites, um fenómeno plástico, e assim como o físico reage sobre o intelectual, o intelectual reage do mesmo modo sobre o físico»[12]. Este vaivém metodológico encerrou num círculo vicioso o erudito autor do monumentalíssimo Fundamentos do Século XIX, servindo-lhe de demonstração onde coisa alguma se podia demonstrar e servindo aos seus discípulos de justificação para o genocídio dos judeus, a escravização dos eslavos e o culto dos nórdicos. Naquele país das maravilhas «nada nos impediria de afirmar algo aparentemente paradoxal, que os homens baixos deste grupo [os germanos] são grandes porque pertencem a uma raça de pessoas altas, e pelo mesmo motivo os seus braquicéfalos têm crânios alongados. Observando com mais atenção, depressa distinguireis, tanto no seu aspecto físico como no seu ser íntimo, os traços característicos do germano»[13]. Se por acaso encontrássemos um wagneriano pequenino e braquicéfalo, nada de precipitações, «observando com mais atenção» estávamos em Bayreuth, ei-lo - era um germano, era grande, era dolicocéfalo!
            Com o método infalível do círculo vicioso o enciclopédico doutrinador pisava com firmeza os dois terrenos e deduzia a biologia a partir da cultura com o mesmo à-vontade com que partira da biologia para estabelecer a cultura. Afastando as dúvidas de numerosos filólogos quanto à possibilidade de usar critérios linguísticos para definir uma raça ariana e desprezando também os «resultados caóticos obtidos pela mensuração craniana», Chamberlain pretendia que bastava a semelhança de concepções jurídicas para definir os arianos enquanto raça e para os distinguir das outras raças[14]. E o amor que celtas e germanos votavam à poesia indicaria tanto como a sua semelhança física a inclusão dos dois povos numa mesma raça germânica, considerada em sentido lato[15]. A aptidão poética seria também um argumento a favor da comunidade de origens do germano e do velho eslavo[16], e com um objectivo idêntico Chamberlain invocou a similitude dos sentimentos religiosos[17].
            Esta cómoda possibilidade de inferir a raça a partir do espírito não se aplicava só a noções colectivas e a vastos conjuntos populacionais, mas funcionava igualmente nos casos individuais. Ambrósio, por exemplo, bispo de Milão e célebre santo, era classificado entre os verdadeiros romanos. «[...] é certo que a prova é impossível», observou Chamberlain, para concluir em seguida com uma peculiar metodologia: «[...] mas como é igualmente impossível demonstrar o contrário, o único elemento de apreciação decisivo é aqui fornecido pela própria personalidade»[18]. Uma vez mais aquilo que se pretendia demonstrar servia de prova da demonstração. As biografias de santos ofereceram a Chamberlain um terreno fértil de deduções, já que, «com o Cântico ao Sol, Francisco [de Assis] demonstra ser um indo-germano de sangue puro [...]»[19]. Ele torceu porém o nariz perante outro santo não menos conhecido, Paulo de Tarso, e em abono da sua tese de que o apóstolo teria um pai judeu e uma mãe grega convertida ao judaísmo recorreu de novo ao infalível círculo vicioso. «Quando faltam as provas históricas, a psicologia científica tem todo o direito de dar a sua opinião»[20]. Seguia-se uma análise dos traços psicológicos de São Paulo e das características da sua teologia, que para a frondosa imaginação de Chamberlain revelariam ascendentes biológicos contraditórios.
            Se era possível transitar do espírito para o físico, nada impediria as influências ideológicas de corresponderem a verdadeiras mestiçagens raciais. Note-se a importância deste passo, pois o plano cultural não se limitava já a ser transformado de expressão da biologia em ponto de partida da biologia, mas a própria actividade intrabiológica poderia ocorrer directamente no âmbito cultural. A assimilação através das ideias agiria até mais depressa do que a assimilação através da miscigenação física[21]. Pusesse-se o leitor de Chamberlain a frequentar judeus, a ler literatura judaica, a apreciar quadros e esculturas de artistas judeus, e tê-lo-íamos judaizado num ápice[22]. Sucedera isto ao herético Pelágio, apesar de ser «bretão», mas «o aristotelismo e o hebraísmo fizeram-no a tal ponto perder [...] o sentido da poesia e do mito que ele se converteu [...] num semijudeu [...]»[23].
            O nazismo tornou ameaçadoras, e mais tarde trágicas, as elucubrações alucinadas e metodologicamente incriteriosas de Houston Stewart Chamberlain, já que a circularidade de argumentação entre a biologia e a ideologia foi também empregue, com as consequências conhecidas, por Hitler e pelos seus adeptos. Quando o Führer, ao discursar no congresso do partido nacional-socialista em 1933, se referiu, a propósito dos nórdicos, «àqueles que pertencem em espírito a uma certa raça»[24], ele deixou implícito que tanto se podia deduzir uma cultura de uma biologia como deduzir uma biologia das manifestações de uma cultura. E foi com este critério - ou falta dele - que Hitler orientou a sua política.
            Para o nacional-socialismo todos os judeus, pelas suas próprias características raciais, eram subversores. Segundo a mitologia que os nazis herdaram de alguns dos seus precursores, os judeus seriam não uma raça mas uma anti-raça, formada pelas escórias de outras raças, e por isso era-lhes vedado possuir uma coesão própria. Como afirmam as instruções do Ministério da Propaganda enviadas em 2 de Abril de 1943 aos directores e chefes de redacção dos órgãos de imprensa do Reich: «Sublinhar: No caso dos judeus não se trata apenas da existência de um pequeno número de criminosos (como sucede em qualquer outro povo), mas todo o judaísmo se desenvolveu a partir de raízes criminais e a sua própria natureza é criminosa. Os judeus não são um povo como os outros, mas um pseudopovo cuja coesão se deve à criminalidade hereditária»[25]. Os judeus unir-se-iam contra os seus inimigos, mas sem que eles mesmos fossem coesos. Desta condição de anti-raça lhes adviria o afã em destruir tudo o que fosse uma ordem estável. Num discurso de 11 de Dezembro de 1941 Hitler estigmatizou «o elemento judaico, cujos interesses conduzem todos à desintegração, e nunca à ordem»[26]. Tratava-se de um tema comum do nacional-socialismo, que justificava o genocídio dos judeus com a apologia da ordem.
            E assim como de uma caracterização biológica, ou tida como tal, os nazis inferiam os traços distintivos de um comportamento e de uma cultura, em sentido inverso consideravam que todos os subversores – socialistas, comunistas, anarquistas – pelo mero facto de o serem, mostravam o seu carácter racialmente judaico. «Para tornar uma luta compreensível às mais vastas massas ela deve ser sempre orientada contra dois alvos, contra uma pessoa e contra uma causa», explicava Hitler aos seus adeptos em 1925. «Assim, contra quem deve combater o nosso movimento? Contra o judeu enquanto pessoa e contra o marxismo enquanto causa»[27]. E pouco antes de soçobrar nos escombros do Reich o Führer insistia ainda: «Falamos de raça judaica por comodidade de linguagem, porque, para falar com exactidão e sob o ponto de vista genético, não existe uma raça judaica. [...] A raça judaica é antes de mais uma raça mental. [...] Uma raça mental é algo mais sólido e duradouro do que uma simples raça»[28]. Tal como, relativamente aos nórdicos, Hitler havia podido evocar aqueles que «pertencem em espírito a uma certa raça», também relativamente aos judeus ele podia referir a «raça mental».
            As próprias normas jurídicas do Reich identificaram a condição de judeu com a condição de comunista. Durante anos os judeus atingidos pelas medidas raciais foram classificados como «inimigos do Estado», sendo mesmo, por vezes, obrigados a assinar declarações em que se reconheciam como «comunistas». Só em Novembro de 1941 o Ministério das Finanças passou a dispor de um quadro legal que lhe permitiu confiscar em massa os haveres dos judeus deportados; até então as apreensões haviam obedecido a um critério individual, recorrendo-se na maior parte dos casos às leis que autorizavam a expropriação dos bens dos comunistas e dos demais opositores[29]. Esta evolução do sistema jurídico, todavia, não implicou que para os nazis as categorias raciais tivessem deixado de equivaler a categorias ideológicas, porque segundo duas sentenças de tribunal, de Junho de 1942 e de Fevereiro de 1943, mesmo pessoas que, quanto aos seus progenitores, fossem cem por cento arianas seriam tratadas como judeus se mostrassem estar ligadas por elos religiosos e civilizacionais à comunidade judaica[30].
            Com efeitos incomparavelmente mais trágicos, o círculo vicioso entre biologia e ideologia orientou o genocídio. Nos vastíssimos territórios de Leste ocupados pelas tropas do Reich e pelas dos seus aliados, os Einsatzgruppen, Comandos de Extermínio, matavam indiferenciadamente judeus e comunistas[31], porque consideravam qualquer comunista como judeu. O objectivo explícito dos Einsatzgruppen pressupunha a ausência de distinção entre as duas categorias, e nem sequer a contabilização dos mortos separou as vítimas ideológicas das vítimas raciais. Na maioria dos relatórios as execuções de judeus e de membros do Partido Comunista soviético foram enumeradas em conjunto, sem que possamos discriminar as duas categorias de vítimas[32]. E ao sabermos que um douto professor da Universidade de Strassburg escreveu a Himmler pedindo-lhe crânios de «comissários judaico-bolchevistas» destinados ao museu do seu departamento, para afinal receber crânios de judeus assassinados num campo de concentração, porque não se encontrara um número suficiente de cabeças de comunistas em bom estado[33], podemos concluir que mesmo para os cientistas – ou para quem assim se intitulava – as características biológicas se confundiam plenamente com as ideológicas. Aliás, a terminologia corrente identificava o político e o étnico ao referir o «bolchevismo judaico». Era este o conceito nuclear, exprimindo de maneira sintética a circularidade de percursos entre o físico e o intelectual. Por isso Himmler, em 1942, opôs-se a qualquer tentativa de definir por decreto o que se entendia por «judeu», já que, para empregar as suas palavras, «com todos esses estúpidos compromissos estaremos unicamente a embaraçar a nossa acção»[34]. Com efeito, seria impossível delimitar através de critérios físicos uma raça, ou antes uma anti-raça, à qual era atribuída a fluidez das entidades ideológicas. «Para a filosofia SS, o inimigo é o poderio do Mal, expresso intelectual e fisicamente», escreveu um antigo prisioneiro dos campos de concentração, que analisou com muita lucidez a estrutura interna do sistema concentracionário nazi. «O comunista, o socialista, o liberal alemão, os revolucionários, os resistentes estrangeiros são os representantes activos do Mal. A existência objectiva de certos povos, porém, de certas raças, dos judeus, dos polacos, dos russos é a expressão estática do Mal. Um judeu, um polaco, um russo não precisam de agir contra o nacional-socialismo; por nascimento, por predestinação, eles são heréticos não assimiláveis, destinados ao fogo apocalíptico»[35].
            Também na dança de roda entre o sexo e as ideias, as ideias e o sexo, as defensoras e os defensores das abordagens «de género» não seguirão o caminho que quiserem, mas aquele que a história lhes ditar, e será aí, nesse terreno último, e de nós todos agora desconhecido, que eles e elas se apresentarão com o seu rosto definitivo. Sucedeu-me participar numa banca julgadora de uma tese de doutoramento feminista na USP, e outro dos membros da banca, mais meticuloso do que eu, deu-se conta de algo que me escapara e observou à candidata que ela se referira no feminino às professoras de uma dada escola e no masculino ao pessoal directivo, embora este fosse igualmente composto por mulheres. E a autora da tese exclamou, não sei se com notável candura teórica ou completo despudor metodológico: «Eu não consigo sequer usar o género feminino para designar esse tipo de práticas». Não pude deixar de ouvir o eco das vociferações de Hitler - aquelas, ou aqueles, que pertencem em espírito a um certo sexo, um sexo mental!


Referências


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Sokal, Alan e Bricmont, Jean (1998) Intellectual Impostures. Postmodern Philosophers’ Abuse of Science, Londres: Profile.



[1] Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta, Porto: Afrontamento, 2003.
[2] O artigo de Hannes Meyer, publicado em 1926, encontra-se antologiado em A. Kaes et al. (orgs. 1995) 445-449. O trecho citado vem na pág. 446.
[3] Alfred Polgar, num artigo publicado em 1928, antologiado em id., ibid., 204.
[4] Gina Kaus, «Die Frau in der Modernen Literatur», Die Literarische Welt, 15 de Março de 1929, antologiado em id., ibid., 515-517. As passagens citadas encontram-se nas págs. 516 e 517.
[5] J. P. Marat (1972) 161.
[6] E. Balibar (1994) 192.
[7] Citada por A. Sokal et al. (1998) 100.
[8] Id., ibid., 101-107.
[9] H. S. Chamberlain (1913) 296. Ver igualmente as págs. 656-660.
[10] Id., ibid., 297 (sub. orig.).
[11] Id., ibid., 621 (subs. orig.).
[12] Id., ibid., 1154.
[13] Id., ibid., 679.
[14] Id., ibid., 163-164 n.
[15] Id., ibid., 637, 640-641.
[16] Id., ibid., 643.
[17] Id., ibid., 645-646.
[18] Id., ibid., 414.
[19] Id., ibid., 1215 n. 3.
[20] Id., ibid., 792.
[21] Id., ibid., 621-622.
[22] Id., ibid., 622. Na mesma perspectiva ver a pág. 1280 n. 1.
[23] Id., ibid., 769, 770.
[24] Citado por E. Conte et al. (1995) 106.
[25] Citado por R. Hilberg (1961) 656.
[26] Citado por W. L. Shirer (1995) II 302.
[27] Citado por F. L. Carsten (1967) 123.
[28] Citado por J. Billig (2000) 300.
[29] R. Hilberg (1961) 300-302.
[30] Id., ibid., 52.
[31] H. Arendt (1994) 79, 106; J. Billig (2000) 281; A. Bullock (1972) 702; I. C. B. Dear et al. (orgs. 1995) 110, 324, 970; R. Hilberg (1961) 643.
[32] W. L. Shirer (1995) II 371 n.
[33] R. Hilberg (1961) 608.
[34] Citado por H. Arendt (1972) 262 n. 62.
[35] D. Rousset (1946) 108.
 
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